Adicionar legenda |
O
exercício sacerdotal de Jesus é superior a qualquer outro conhecido. Na
ordem sacerdotal proveniente de Arão, a atuação dos sacerdotes[1] e
sumo sacerdotes resumia-se ao Tabernáculo e, posteriormente, ao Templo, cada um
com sua função específica estabelecida pela Lei. Jesus é mostrado na epístola
aos Hebreus como o maior de todos os Sumos Sacerdotes. Esse ofício, largamente
descrito no Antigo Testamento, tinha uma importância singular no que diz
respeito às relações do povo para com Deus. Letham nos mostra quatro principais
razões para entendermos essa tão preciosa relevância: Primeiro ele era o
representante de Israel na presença de Deus. O peitoral inconfundível que ele
vestia continha doze pedras preciosas, com os nomes das doze tribos de Israel
gravados nelas (Êx 28.17-21). Cada vez que ele entrava na presença de Yahweh[2],
ele levava essas pedras preciosas com ele (Êx 28.29), indicando que ele estava
lá no lugar do povo com o qual Yahweh havia entrado em um pacto. Em segundo
lugar, ele tinha funções proféticas. O urim e o tumim[3] também
deviam se encontrar no peitoral (Êx 28.30). Com a ajuda deles, o sacerdote
poderia declarar a vontade do Senhor em determinado assunto. Uma vez que os
profetas surgiram esses objetos caíram em desuso. [...] Em terceiro lugar, o
sumo sacerdote compartilhava com todos os sacerdotes o pronunciamento da bênção
sobre Israel, declarando a bênção pactual de Yahweh (Nm 6.22-27). Em quarto
lugar, enquanto o sacerdócio em geral presidia sobre a oferta dos sacrifícios
diários, apenas o sumo sacerdote estaria envolvido no ritual do Dia da Expiação
(Lv 16)[4].
Em essência, a sua função era expiatória[5] e
propiciatória[6] (2007,
p. 104, 105). O sumo sacerdote era o oficial representante do povo
perante Deus. Jesus se fez carne, e, dentre os seus muitos desígnios, também
estava o de ser eterno representante daqueles que o seguissem. Nesse ofício,
Cristo segue o padrão do sacerdócio araônico. Entretanto, a alusão a Melquisedeque
como um tipo seu ilustra bem sua autoridade real, sua eternidade, como também a
natureza perpétua de sua obra (GILBERTO, Et All, 2009, p. 145). Grudem (1999,
p. 525) afirma que “Jesus preencheu todas as expectativas que prefigurou, não
apenas nos sacrifícios do Antigo Testamento, mas também na vida e ação dos
sacerdotes que os ofereciam: ele era tanto o sacrifício quanto o sacerdote que
oferecia o sacrifício”. Disse isto, o autor, ao tratar da morte de Jesus[7] na
cruz do Calvário, que se tornou um sacrifício perfeito. Corroborando esse
pensamento, outro escritor argumenta: No Antigo Testamento, os sacerdotes
ofereciam cordeiros e bodes pelos pecados do povo. (Hb 10.4) Cristo,
porém, o grande Sumo Sacerdote (Hb 7.26, 27) sacrificou-se a si
mesmo, sendo sacerdote e sacrifício numa só pessoa (Hb 9.12-14; Ef 5.4).
[...] Cristo cumpriu seu ofício sacerdotal, prestando perfeita obediência a seu
Pai, o qual, unicamente levado por amor, entregou seu filho unigênito para
redenção do mundo (Jo 3.16; 1.29). A Escritura descreve convenientemente a obra
redentora de Cristo como obediência a Deus. [...] A obediência vicária de
Cristo compreende em si: a) obediência ativa, pela qual nosso
divino substituto se sujeitou à obrigação da Lei de Deus, cumprindo-a por nós
mediante a sua vida perfeita e santa (Gl 4.4,5; Rm 5.19; Mt 3.15) b) sua obediência
passiva, pela qual se submeteu à maldição da Lei[8],
padeceu e morreu pelos pecados do mundo (Hb 9.12; Ef 5.2; Is 53. 4-6). Dessa
maneira, por sua vida santa e morte inocente, Cristo nos adquiriu aquele mérito
divino que é a nossa justiça perante Deus para a salvação (Rm 3.22-25; 2Co
5.19-21) (MUELLER, 2004, p. 299, grifo meu). Portanto, depois de sua
morte sacrificial, Jesus torna-se o nosso Sumo Sacerdote, ou seja, aquele a
quem podemos recorrer, porque Ele próprio conhece todas as dificuldades
humanas. Disse o anônimo escritor da carta aos Hebreus: “Porque não temos um
sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que,
como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15 ARC). As qualidades de
Cristo como sumo sacerdote são expostas, de forma enfática, na epístola aos
Hebreus (LETHAM, 2007, p. 109). O autor também ressalta: Ele mesmo é
plenamente humano, tendo participado da nossa carne e sangue. Ele sofreu,
suportou tentações e experimentou a morte (2.11-18). Logo, ele permanece em
solidariedade com aqueles que apresenta. Em 5.1-10, isso é colocado de forma
mais ampla. Ele foi um conosco na fraqueza humana. Suas orações foram
oferecidas a Deus com forte clamor e lágrimas. Ele aprendeu a obediência por
meio do sofrimento (5.7-8). Portanto, ele é capaz de simpatizar conosco em
nossas dificuldades (4.14, 15). Ele está equipado para nos representar diante
de Deus, pois ele conhece os problemas que enfrentamos (5.1, 2). Além do mais,
assim como Arão, ele foi comissionado por Deus. Ele não buscou o sumo
sacerdócio perfeitamente, pois ele enfrentou a tentação com sucesso, e saiu
imaculado da provação (4.14-16; 7.26, 27; 10.5-10). Seu aprendizado da
obediência por meio do sofrimento (5.8) não foi um progresso de desobediência à
obediência, mas, antes, foi todo um desenvolvimento ao longo de toda a sua vida
de um a outro estágio de obediência. Como Lucas acentua, sua obediência a seus
pais e seu crescimento em graça diante das pessoas e Deus (Lc 2.39-52), em
Hebreus a implicação é desse crescimento genuíno como um ser humano,
enfrentando cada desafio em obediência ao Pai de forma apropriada à idade que
ele havia atingido (2009, p. 109, 110). Essas qualidades e principalmente
as que se relacionam com a intercessão de Jesus por nós são criticadas por
alguns estudiosos. Esses são os que afirmam serem estes ofícios
profético, sacerdotal e régio, no sentido que é aplicado a
Cristo, “apenas descrições figuradas dos diferentes aspectos da obra realizada
por Cristo” (BERKHOF, 2001, p. 335), negando seu verdadeiro significado
prático. Como nesta discussão está em pauta o ofício sacerdotal, dizem que
Cristo, como sacerdote eterno, ou seja, aquele que intercede constantemente
pelos seus, é apenas simbólico, não havendo uma concretização de sua
intercessão literal local, mas essa intercessão dá-se somente com sua presença
diante do Pai. Alguns têm argumentado que essa obra de intercessão como
sumo sacerdote é apenas a permanência na presença do Pai como lembrete contínuo
de que ele mesmo pagou a pena por todos os nossos pecados. De acordo com esse
ponto de vista, Jesus não faz de fato orações específicas a Deus Pai por causa
das necessidades individuais que enfrentamos na vida, mas “intercede” apenas no
sentido de permanecer na presença de Deus como nosso sumo sacerdote que nos
representa (GRUDEM, 1999, p. 526). Berkhof, entretanto, afirma que “é
um triste engano supor que Ele só é sacerdote num sentido figurado” (2001, p.
335). “Apesar de Cristo haver oferecido um sacrifício perfeito ‘de uma vez por
todas’, sua obra sacerdotal ainda continua. Ele vive para aplicar os méritos e
o poder de sua obra expiatória perante Deus, a favor dos pecadores”. Esse mesmo
autor conclui: O mesmo que morreu pelos homens agora vive para eles, para
salvá-los e para interceder por eles. E, quando oramos “em nome de Jesus”,
estamos pleiteando a obra expiatória de Cristo como a base da nossa aceitação,
porque somente por ela temos a certeza de ser aceitos “gratuitamente no amado”
(PEARLMAN, 2006, p. 171). Dessa forma, Jesus é o Sumo Sacerdote
Perfeito, que intercede pelos seus a todo instante. O apóstolo Paulo enfatiza:
“Pois é Cristo que morreu ou, antes, quem ressuscitou dentre os mortos, o qual
está à direita de Deus, e também intercede por nós” (Rm 8.34, ARC). Somando-se
a essa citação, o escritor aos Hebreus afirma que Jesus vive sempre
intercedendo por nós: “Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele
se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.25, ARA,
grifo nosso). O ministério sacerdotal de Jesus é, por conseguinte, iniciado
antes de sua morte, entretanto, de maneira indistinta. “O trabalho de
intercessão ele realizou, de alguma forma, quando ele esteve na terra (Jo 17)[9]”
(SEVERA, 1999, p. 241). Porém, depois da oferta do seu sacrifício vicário
propriamente dito, é que Cristo passou a exercer, “especificamente, esse
ministério de intercessão (Hb 7.25; 9.24). A base da Sua intercessão é o Seu
sacrifício (1Jo 2.1, 2)”[10]. Segue-se
daqui que é ele o eterno intercessor, pelo auxílio de quem conseguimos favor.
De onde, por outro lado, nasce não somente confiança em orar, mas também
tranqüilidade às consciências piedosas, enquanto, em segurança, se reclinam na
paterna indulgência[11] de
Deus e estão, com toda certeza, persuadidas de que lhe agrada tudo quanto é
consagrado através do mediador. Embora, na verdade, sob a Lei haja Deus
ordenado se lhe oferecessem sacrifícios de animais, diversas e nova foi a
disposição em Cristo, assim que o mesmo que era o sacerdote fosse também a
vítima, porquanto nem se podia achar outra satisfação idônea pelos pecados, nem
alguém digno de tão elevada honra que pudesse oferecer o Unigênito à Deus
(CALVINO, 1985, vol. 2, p. 267, 268). Dentro dessa linha exposta por
Calvino, conclui-se que Cristo é o eterno intercessor. Intercedeu, desde a
fundação do mundo[12],
na disposição para sua vinda a esta terra, exposta pelo Pai na promessa de redenção;
intercedeu quando do Seu ministério terreno, o qual foi consumado com Sua morte
na cruz; e vive intercedendo por nossas transgressões junto ao Pai. Mediante
esta última consideração, percebe-se que este é o importante papel de Jesus
como o Perfeito Sumo Sacerdote. Disse o anônimo escritor aos
Hebreus: Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já
realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos,
quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros,
mas pelo próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo
obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de
uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto a
purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno,
a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de
obras mortas, para servimos ao Deus vivo! Porque Cristo não entrou em santuário
feito por mãos, figura do verdadeiro, porém, no mesmo céu, para comparecer,
agora, por nós, diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas
vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue
alheio. Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes
desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se
manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o
pecado. E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo,
depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo se oferecido uma vez para
sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos
que aguardam para a salvação (Hb 9. 11-14, 24-28, ARA). Na exposição
dos ofícios desempenhados por Cristo, resta-nos apenas mostrar o de Rei.
Para isso, é necessário, primeiro, acentuar o exercício desse ofício nas nações
da antiguidade; depois observar seu estabelecimento na nação
judaica; e finalmente desenvolver sua atuação em Jesus. É o que faremos nos
próximos tópicos.
[2] Transliterando: Javé,
Jeová.
[3] Expressão
hebraica que significa, provavelmente, luzes e verdades. Embora não seja
possível precisar em que consistia este objeto usado pelo sumo sacerdote
hebreu, supõe-se ter sido algo através do qual podia ele, desde que em plena
comunhão com Deus, buscar a vontade divina acerca de determinados fatos (Êx
28.30; Lv 8.8; Dt 33.8) (ANDRADE, 2007, p. 354).
Representavam juízo concernente à vontade de Deus. O sumo sacerdote
era o juiz do povo e fazia suas resoluções servindo-se destas pedras.
Simbolizavam poder e sabedoria na tomada de decisões (LIVINGSTON, Et All, vol.
1, 2009, p. 215, grifo do autor).
[4] O dia anual da
expiação (ainda hoje celebrado no judaísmo com modificações e conhecido por seu
nome hebraico: yôm kippûr) era celebrado no décimo dia do sétimo
mês (tisri [...]). Era o dia mais solene do ano. Em cada uma dessas
ocasiões, a eliminação do pecado era válida para um só ano (Hb 10.3), mas
prenunciava o futuro cancelamento eterno dos pecados (Zc 3.4, 8, 9; 13.1; Hb
10.14). Depois de oferecido o bode sacrificial, o sumo sacerdote impunha as
mãos sobre a cabeça do bode emissário e confessava sobre ele os pecados do povo.
Em seguida, esse bode era enviado ao deserto levando consigo os pecados do
povo. Essa cerimônia foi uma das prefigurações históricas, oferecidas por Deus,
da futura expiação do pecado humano por meio da morte de Cristo (HALLEY, 2001,
p. 128).
[5] A palavra
“expiação” vem do termo hebraico cofer. Trata-se de um substantivo
do verbo caufar, cobrir. O cofer ou a cobertura
era o nome da tampa ou cobertura da arca da aliança e constituía o que era
chamado propiciatório. A palavra grega traduzida por expiação é katallage.
Isso significa reconciliação com o favor ou, mais estritamente, os meios ou
condições para que haja reconciliação com o favor; de katallasso,
“mudar ou trocar”. O significado estrito do termo é substituição [...] a
expiação é a substituição governamental da punição dos pecadores pelos
sofrimentos de Cristo. São os sofrimentos de Cristo cobrindo os pecados dos
homens (FINNEY, 2009, p. 280, 281).
[6] Propiciação [Do
lat. Propitiatio, tornar favorável] Doutrina segundo a qual o
sacrifício de Cristo, no Calvário, tornou Deus favorável à humanidade caída e enferma
pelo pecado (I Jo 2.2). Esta doutrina está ligada, essencialmente, ao
ministério sacerdotal de Cristo (I Jo 4.10) (ANDRADE, 2007, p. 306).
[7] Algumas teorias
são apresentadas pela maioria dos teólogos, com a finalidade de explicar a obra
da expiação executada por Cristo. Horton apresenta cinco teorias: A da
Influência Moral; do Resgate; da Satisfação; Teoria Governamental; e a Teoria
da Substituição Penal (Et All, 2010, p. 346-350). Strong diferencia com três e
concorda apenas com uma, quando, conseqüentemente, aplica quatro em sua obra:
Moral; Comercial; Legal e Sacrificial (2003, p. 380-383). Bancroft faz alusão
para alguns pontos de vista que considera como errôneos, acerca da natureza da
morte de Cristo, e apresenta negativamente cinco teorias: A teoria de acidente;
A de morte de mártir; A teoria da influência moral; A governamental e A teoria
do amor de Deus. Como positivas destaca que a morte de Cristo foi:
Pré-determinada; voluntária; vicária; sacrificial; expiatória; propiciatória;
redentora e substitutiva (2006, p. 145-152). Outros ainda defendem de modo
semelhante.
[8] A pena
de morte seria agravada pela exposição dos corpos. Pendurar não era
meio de execução, mas sim de desgraça, uma declaração pública de que o
criminoso quebrara a lei do concerto e, portanto, era maldito de
Deus (cf. Nm 25.4; 2Sm 4.12) (LIVINGSTON Et All, vol. 1, 2009, p. 460,
grifos do autor).
[9] O capítulo 17
do Evangelho segundo João é comumente conhecido como o capítulo da “Oração
sacerdotal de Jesus”.
[10] Ibidem.
[11] De acordo com
Andrade, deriva do latim indulgentia, e significa: “clemência,
misericórdia, perdão” (2007, p. 228).
[12] A expiação teve
sua origem na eternidade. Sua fonte foi Deus. A expiação era um fato implícito
no coração de Deus antes de tornar-se um fato explícito na história do
homem – um fato da eternidade antes de tornar-se um fato
do tempo (BANCROFT, 2006, p. 149).
Artigo extraído de: RODRIGUES, André. O Tríplice Ofício de Cristo: Profeta, Sacerdote e Rei. 2011, Editora Nossa Livraria - PE
Nenhum comentário:
Postar um comentário