sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A ENIGMÁTICA ORDEM DE MELQUISEDEQUE - por André Rodrigues


Fica claro que “no Antigo Testamento não havia apenas uma única ordem de sacerdotes, mas duas” (LETHAM, 2007, p. 107): a procedente de Arão e outra, um tanto quanto misteriosa, tendo Melquisedeque[1] como principal personagem[2]. As questões relacionadas a esse “Rei-Sacerdote” dão espaço principalmente às especulações tradicionais da história do povo judeu. Por exemplo: “Uma tradição hebraica diz que se trata de Sem, filho de Noé[3] e sobrevivente do dilúvio – que ainda vivia como o homem mais velho da época no mundo. “Na era patriarcal, ele seria sacerdote de toda a espécie humana” (HALLEY, 2001, p. 92). Somando-se a essa citação, Soares diz que “Muitos rabinos da antiguidade afirmam ser ele Sem, o mais velho sobrevivente do dilúvio, pois se recusam a admitir a idéia de Abraão ter dado os dízimos a um estrangeiro” (2008, p. 116). Toda essa problemática deve-se ao fato de que a menção escriturística acerca de Melquisedeque é restrita, ocorrendo apenas em Gn 14.18ss e Sl 110.4. Portanto, ninguém conhece de modo preciso toda a história desse homem. O que se pode afirmar, com respaldo bíblico resumido, é que Melquisedeque de fato era “o honorável sacerdote-rei de Salém (Jerusalém) [...] que pronunciou uma bênção a Abrão” (LIVINGSTON, Et All, vol. 1, 2009, p. 61, grifo do autor). Um breve relato é ressaltado acerca dele pelo historiador: O rei de Sodoma veio até ele no lugar a que chamam Campo Real, onde o rei de Salém, que agora é Jerusalém, o recebeu com grandes demonstrações de estima e de amizade. Esse príncipe chamava-se Melquisedeque, isto é, “rei justo”. E ele era verdadeiramente justo, pois a sua virtude era tal que, por consentimento unânime, havia sido feito sacerdote do Deus Todo-poderoso. Ele não se contentou em receber apenas a Abraão, mas também a todos os seus. Deu-lhes, no meio dos banquetes que realizou, os louvores devidos à sua coragem e virtude e prestou a Deus públicas ações de graças por tão gloriosa vitória. Abraão, por sua vez, ofereceu a Melquisedeque a décima parte dos despojos que tomara dos inimigos, e este aceitou (JOSEFO, Antiguidades Judaicas, Livro 1º, Cap. 10, p. 92, 93). Dá para se perceber quão complexa é a figura de Melquisedeque. Entretanto, para facilitar a compreensão acerca deste misterioso personagem, outro ponto a considerar é que Melquisedeque é tipo de Cristo, ou seja, exercia um sacerdócio semelhante ao que seria exercido por Jesus no Novo Concerto sacerdotal, ou seja, uma nova dispensação. “Jesus não poderia ser um sacerdote em Israel. Ele não era um membro da tribo de Levi, e menos ainda da família de Arão. Portanto, ele simplesmente não era qualificado” (LETHAM, 2007, p.105). Contudo: Os profetas prediziam que Jesus viria como sacerdote eterno (cf. Sl 110.4). Quando Ele veio, foi identificado como o sumo sacerdote prometido (cf. Hb 2.17; 3.1; 4.14, 15; 5.6,10; 8.1; 10.21). [...] Jesus, como sacerdote conforme a ordem de Melquisedeque, evidencia que o seu sacerdócio não era da Lei, mas sim de uma nova dispensação. Conforme aquela dispensação, Jesus jamais poderia ser sacerdote, porque estes eram todos da tribo de Levi (cf. Nm 18.27; 1Cr 23.13), enquanto Jesus era da tribo de Judá (cf. Hb 7.13,14). Assim, ele foi sacerdote chamado por Deus. “Jurou o Senhor: “Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 7.21). Jesus, sacerdote conforme a ordem de Melquisedeque, chama a atenção para o fato de que Ele, assim como Melquisedeque, era tanto rei como sacerdote. Assim como Melquisedeque foi chamado “rei de justiça” (Hb 7.2), Jesus também o foi (cf. At 22.14; Jr 23.6; 1Jo 2.1). Assim como Melquisedeque foi chamado “rei de paz” (cf. hb 7.2), Jesus também o foi (cf Is 9.6). Nenhum dos sacerdotes levíticos foi sacerdote e rei. Mas Jesus era tanto sacerdote como Rei (cf. Zc 6.13) (BERGSTÉN, 1999, p. 61, 62).  Talvez isso explique o fato de que informações precisas acerca de Melquisedeque tenham sido encobertas, por ser ele exatamente um sacerdote tipo de Jesus, ou seja, um mistério que estaria por revelar-se. Letham afirma que sua pessoa “estimulou desde a antiguidade a imaginação dos judeus” (2008, p. 114). Como tipo do que deveria vir, pensa-se: “Assim como o misterioso rei da época cananeia era também sacerdote, Aquele que se esperava devia também assumir uma função sacerdotal que se elevasse muito acima do sacerdócio ordinário, que não perecesse, mas que fosse eterno” (IBIDEM). Nessa nova dispensação sacerdotal, é possível sim observar sua superioridade em relação à outra. Acerca da antecipação dessa nova ordem sacerdotal à ordem arônica, o autor a seguir faz uma importante declaração: O escritor aos Hebreus chama a atenção, ainda, para alguns detalhes do curto relato do encontro de Abraão com Melquisedeque, como a menção dos dízimos e o fato de Abraão ser abençoado por ele (Gn 14.19, 20; Hb 7.6), revestindo de significado espiritual extraordinário. No sistema arônico, o dízimo era estabelecido pela lei e era tomado do povo (Nm 18.21; Hb 7.5), mas Abraão o fez espontaneamente. Nesse caso até Levi, bisneto de Abraão, pagou dízimo “por que ainda ele estava nos lombos de seu pai, quando Melquisedeque lhe saiu ao encontro” (Hb 7.9). Assim, o patriarca, fundador da nação de Israel, foi abençoado, isso revela sua estatura espiritual visto que “o menor é abençoado pelo maior” (Hb 7.7), mostrando a superioridade da ordem de Melquisedeque (SOARES, 2008, p. 116, 117, grifo meu). É notória uma elevada perfeição na ordem de Melquisedeque, principalmente na pessoa de Jesus como seu antítipo. A explicação dessa superioridade encontra-se na explicação exegética do Salmo 110.4, que nos revela detalhes dessa ordem. O comentarista abaixo, fazendo um paralelo com a carta aos Hebreus, diz: As funções de rei e sacerdote estão combinadas em Senhor. Este versículo é citado seis vezes em Hebreus (5.6, 10; 6.20; 7.11, 15, 21), onde o autor ressalta que o sacerdócio de Cristo é de uma ordem diferente e superior à de Arão, a saber, um sacerdócio segundo a ordem de Melquisedeque. Como tal, ele não depende de linhagem humana (Hb 7.3). Ele era anterior e melhor do que o sacerdócio dos filhos de Levi (7.4-10). Esse sacerdócio indica uma mudança na lei (7.11-12). Ele explica como Jesus, sendo da tribo de Judá e não da de Levi, podia ser sacerdote (7.13-14). Esse sacerdócio era assegurado e fundamentado pelo juramento do Senhor (7. 20-22). E, visto que é eterno, não sujeito a uma sucessão humana de sumos sacerdotes, ele é a base da nossa salvação completa e eterna (7.23-28). Mesmo o nome Melquisedeque é significativo, um aspecto que tornava a terminologia do salmista especialmente importante. Melquisedeque significa “rei da justiça”. Ele foi identificado em Gênesis 14.18-20 como “rei de Salém”, que significa “rei de paz”. Ele era reconhecido como “o sacerdote do Deus Altíssimo” setecentos anos antes de ser instituído o sacerdócio levítico. No sacerdote régio de justiça e paz temos um tipo de Cristo, que unifica nele mesmo as funções de profeta, sacerdote e rei do AT (CHAPMAN, Et All, vol. 3, 2009, p. 283, grifos do autor). Concluímos que, mediante o sacerdócio deste enigmático Melquisedeque, abre-se um precedente tipológico que serviria como exemplo para o ministério sacerdotal de Cristo, o qual transcenderia qualquer ordem anterior ou posterior (caso houvesse). Assim, nessa ordem segundo Melquisedeque, Jesus se destaca como sendo “um grande Sumo Sacerdote, que está de pé e pronto para vir em auxílio dos que passam por provações (Hb 2.18) e ansioso para dar graça para ajudar nos momentos de necessidade (Hb 4.16) (RYRIE, 2004, p. 296).  



[1] Este nome vem de duas palavras hebraicas (melek), “rei” e (tsedeq), “justiça, retidão” (SOARES, 2008, p. 116). Neste caso a palavra significa literalmente Rei de Justiça (BOYER, 2006, p. 429).

[2] Letham (2007, p.107) destaca que o sumo sacerdote Melquisedeque não teve que estabelecer sua legitimidade pelo apelo à antiguidade. Na verdade, todas as referências à antiguidade de Melquisedeque e ao seu período de vida são omitidas em Gênesis, um ponto que é desenvolvido em Hebreus.

[3] Esta possibilidade disposta na tradição judaica entra em contradição com o testemunho neotestamentário, observado pelo escritor aos Hebreus, quando enfatiza: “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas, sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7.3, ARC).

Artigo extraído de nosso Livro O Tríplice Ofício de Cristo: Profeta, Sacerdote e Rei  (RODRIGUES, 2011, p. 84 - 89).

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