Aqui,
passaremos a desenvolver a ideia desses ofícios na história. Os reformados[1] costumam
falar de três ofícios com relação à obra de Cristo[2]. Berkhof
(2004, p. 327) diz-nos que “Calvino[3] foi o
primeiro a reconhecer a importância de distinguir os três ofícios do Mediador e
chamar a atenção para isto num capítulo específico das suas Instituta[4]”. Entretanto,
não deixa de fazer menção de que os chamados primeiros Pais da Igreja
ressaltavam esses diferentes ofícios na pessoa de Jesus[5]. Temos,
por exemplo, o testemunho de Euzébio de Cesaréia, “Pai da História Eclesiástica
(263-340) ‘que’ propôs-se a escrever desde os primórdios da Igreja Cristã até
os seus dias” (ANDRADE, 2007, p. 382), o qual disserta sobre o conhecimento dos
hebreus referente aos ofícios de Cristo desta forma:
Deve-se saber que, entre os hebreus, o nome
de Cristo[6] não era
ornamento apenas dos que estavam investidos do sumo sacerdócio e eram ungidos
simbolicamente com óleo preparado, mas também dos reis, que eram ungidos pelos
profetas por inspiração divina e faziam deles imagem de Cristo, pois
efetivamente estes reis já levavam em si mesmos a imagem do poder real e
soberano do único e verdadeiro Cristo, Verbo divino, que reina sobre todas as
coisas. Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns
profetas foram convertidos em Cristo, figuradamente, por meio da unção com
óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. Prova disto
é que nenhum dos que antigamente foram ungidos simbolicamente: nem sacerdotes,
nem reis, nem profetas, possuíam tão alto poder de virtude divina como está
demonstrado que possuía Jesus, nosso Salvador e Senhor, o único e verdadeiro
Cristo. (EUSÉBIO DE CESARÉIA, 2005, p. 23, grifo meu).
Essa pode
ser uma das mais importantes declarações históricas a esse respeito. Retornando,
porém, ao período da Reforma, diz-se que não era unânime a concepção dos três
ofícios na pessoa de Jesus. Berkhof ressalta que nem todos os teólogos
Luteranos[7]
declaravam a existência dos três ofícios, mas distinguiam somente dois, fazendo
uma junção do ofício profético ao sacerdotal. Contudo, a tríplice distinção
consolidou-se como aceita no âmbito comum da teologia, mesmo não havendo
concretização quanto à importância desses ofícios e quanto à relação mútua
entre eles (2004, p. 327). Esse pensamento acerca do reconhecimento de apenas
dois dos ofícios perdurou com os Socinianos[8].
Os Socinianos, na verdade, reconheciam só
dois ofícios: Cristo agiu como profeta na terra, e age como rei no céu. Apesar
de falarem também de Cristo como sacerdote, incluíam subordinadamente a Sua
obra sacerdotal em Sua obra real e, portanto, não reconheciam o Seu saderdócio
terreno. (IBIDEM).
Outros argumentos contrários a essa doutrina
são largamente expostos quando entra em cena na Igreja Luterana certa
contrariedade “à doutrina dos três ofícios de Cristo”. Berkhof (2004, p. 327) diz que certo Ernesti, teólogo
luterano, destaca resumida contestação:
Segundo ele, a divisão dos ofícios é
puramente artificial; os termos profetas, sacerdote e rei não são empregados na
Escritura no sentido presente nesta divisão; é importante discriminar com
clareza uma função em relação as outras, na obra realizada por Cristo; e os
termos, como utilizados na Escritura, só são aplicados num sentido figurado e,
portanto, não devem ter significados precisos a eles afixados, designando parte
particulares da obra de Cristo. (IBIDEM).
Contudo,
a explicação acima citada é fraca de argumentação, “visto que são utilizados em
todo o Antigo Testamento [os termos] como designativos daqueles que, nos
ofícios de profeta, sacerdote e rei, tipificam Cristo” (BERKHOF, 2004, p. 327).
Outro
debate é acentuado por Ritschl[9]. Este
afirma que “o termo “vocação” deveria tomar o lugar da palavra “ofício”, que se
presta a mal intendidos”. [...] “ele considerava a função ou atividade real de
Cristo como primordial, e as funções profética e sacerdotal como secundárias e
subordinadas, esta indicando a relação do homem com o mundo, e aquela, a sua
relação com Deus[10]”.
Com isso, Ritschl vai ao extremo e, em alusão à vocação, nega os três ofícios
(BERKHOF, 2004, p. 327, 328).
Entretanto, Berkhof entende que “a distinção dos três ofícios de Cristo
é valiosa e deve ser conservada[11]”.
Contrariando
todas as objeções acima destacadas, McGrath (2005, p. 472) afirma que “essa
visão do ofício triplo de Cristo tornou-se oficial no século XVII e encontrou
plena justificação nas obras dos teólogos protestantes do período”. Este
teólogo diz ainda que um célebre François Tirretini[12] “expõe
sua visão a respeito desta questão de maneira mais detalhada, em um texto
originalmente publicado em latim, no ano de 1679”.
Este
oficio mediador de Cristo distribuiu-se entre três funções, que se constituem
em três ofícios individuais: o ofício profético, o sacerdotal, e o real... A
tríplice miséria humana decorrente do pecado (isto é, a ignorância, a culpa, e
a opressão do pecado) torna este tríplice ofício necessário. A ignorância é
curada por meio do ofício profético; a culpa, por meio do ofício sacerdotal e a
opressão por meio do ofício real. A luz profética dissipa as trevas da
ignorância; o merecimento do sacerdote remove a culpa e alcança nossa
reconciliação com Deus; o poder do rei vence a opressão do pecado e da morte. O
profeta nos mostra Deus; o sacerdote nos leva a Deus; e o rei nos une a Deus em
comunhão, trazendo sua glória até nós. O profeta ilumina nossa mente por meio
do espírito que traz a luz; o sacerdote alivia nosso coração e consciência por
meio do espírito de consolação; o rei subjuga nossas inclinações rebeldes por meio
do espírito de santificação (McGRATH, 2005, p. 472).
Assim,
concluímos que, tanto os testemunhos mais antigos quanto as objeções, são
importantes para a valorização da doutrina, a qual passou despercebida por
diversos teóricos em seus tratados teológicos. Toda essa problemática,
entretanto, pode ter sido o motivo principal para a falta de esmero[13] pelo
referido tema. Mesmo assim, é possível encontrarmos sua presença em alguns poucos
teólogos hodiernos.
Artigo extraído de: RODRIGUES, André. O Tríplice Ofício de Cristo: Profeta, Sacerdote e Rei. 2011, Editora Nossa Livraria - PE
[1]
Os reformados são seguidores do ensino bíblico sistematizado que tem
como base o pensamento do reformador João Calvino.
[2]
Louis Berkhof (2004, p. 327);
Charles Hodge (2001, p. 825); François Turretini, citado por Alister E. McGrath
(2005, p. 472).
[3]
Reformador protestante
francês (1509-1564), adotou as reformas de Lutero, conduzindo-as de forma mais
radical e profunda. Tornou-se especialmente notório por sua doutrina da
predestinação absoluta. Como não pudesse desenvolver seu trabalho na França,
mudou-se para Genebra, na Suíça, onde implantou um governo teocrático (ANDRADE,
2007, p. 377).
[4]
Fundamentos da religião
Cristã, escritos por João Calvino, e que vieram a se constituir no padrão de fé
e prática da Igreja Reformada. As Institutas foram publicadas na cidade suíça
de Basiléia, em 1536. (ANDRADE, 2007, p. 231).
[5]
Ibidem.
[6]
Aqui, essa expressão deve ser
compreendida à luz das palavras originais para Cristo, que quer dizer “ungido”.
[7]
Entre os Luteranos, Gerhard
foi o primeiro a desenvolver a doutrina dos três ofícios, e Quenstedt
considerava a distinção tríplice como não essencial e chamou a atenção para o
fato de que alguns teólogos Luteranos distinguiam somente dois ofícios.
(Ibidem).
[8]
Os Socinianos, precursores
dos modernos Unitarianos, foram outro grupo radical da reforma. Suas idéias se
desenvolveram, na Itália. Lélio Sozzini (Socinus) de Siena (1525-1562) foi
atraído ao anti-trinitarianismo pela morte do anti-trinitariano Servertus em
Geneva. Fausto Sozzini (1539-1604), seu sobrinho, mudou-se para a Polônia em
1579 e permaneceu lá até a sua morte. [...] De acordo com o os socinianos,
Cristo deve ser adorado como um homem que obteve a divindade por sua vida
superior. Sua morte foi simplesmente um exemplo de obediência que Deus deseja
de seus seguidores. Pecado original, deidade de Cristo, a Trindade, a
predestinação foram negadas. (CAIRNES, 1995, p. 250, 251). Segundo Berkhof
(1992, p. 87,88) no início do século XVI, os socinianos declararam que a
doutrina de três Pessoas dotadas de uma essência comum é contrária à razão,
[...] iam além dos arianos, negando a preexistência do Filho e dizendo que
Cristo, quanto à sua natureza essencial, era apenas um homem, embora possuidor
de uma peculiar plenitude do Espírito, tivesse um conhecimento especial de Deus
e, quando de sua ascenção, houvesse recebido domínio sobre todas as coisas.
[9]
Um desses teólogos luteranos
descritos por Berkhof.
[10]
Profeta e sacerdote,
respectivamente.
[11]
Ibidem.
[12]
Célebre teólogo de Genebra,
grande expoente da tradição reformada no século XVII (McGRATH, 2005, p. 472).
[13]
Cuidado
excepcional em qualquer serviço ou atividade (AURÉLIO).
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