sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A CONSOLIDAÇÃO DA DOUTRINA DOS OFÍCIOS NA HISTÓRIA - Por André Rodrigues

Aqui, passaremos a desenvolver a ideia desses ofícios na história. Os reformados[1] costumam falar de três ofícios com relação à obra de Cristo[2]. Berkhof (2004, p. 327) diz-nos que “Calvino[3] foi o primeiro a reconhecer a importância de distinguir os três ofícios do Mediador e chamar a atenção para isto num capítulo específico das suas Instituta[4]”. Entretanto, não deixa de fazer menção de que os chamados primeiros Pais da Igreja ressaltavam esses diferentes ofícios na pessoa de Jesus[5]. Temos, por exemplo, o testemunho de Euzébio de Cesaréia, “Pai da História Eclesiástica (263-340) ‘que’ propôs-se a escrever desde os primórdios da Igreja Cristã até os seus dias” (ANDRADE, 2007, p. 382), o qual disserta sobre o conhecimento dos hebreus referente aos ofícios de Cristo desta forma:

Deve-se saber que, entre os hebreus, o nome de Cristo[6] não era ornamento apenas dos que estavam investidos do sumo sacerdócio e eram ungidos simbolicamente com óleo preparado, mas também dos reis, que eram ungidos pelos profetas por inspiração divina e faziam deles imagem de Cristo, pois efetivamente estes reis já levavam em si mesmos a imagem do poder real e soberano do único e verdadeiro Cristo, Verbo divino, que reina sobre todas as coisas. Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristo, figuradamente, por meio da unção com óleo, de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai. Prova disto é que nenhum dos que antigamente foram ungidos simbolicamente: nem sacerdotes, nem reis, nem profetas, possuíam tão alto poder de virtude divina como está demonstrado que possuía Jesus, nosso Salvador e Senhor, o único e verdadeiro Cristo. (EUSÉBIO DE CESARÉIA, 2005, p. 23, grifo meu).


Essa pode ser uma das mais importantes declarações históricas a esse respeito. Retornando, porém, ao período da Reforma, diz-se que não era unânime a concepção dos três ofícios na pessoa de Jesus. Berkhof ressalta que nem todos os teólogos Luteranos[7] declaravam a existência dos três ofícios, mas distinguiam somente dois, fazendo uma junção do ofício profético ao sacerdotal. Contudo, a tríplice distinção consolidou-se como aceita no âmbito comum da teologia, mesmo não havendo concretização quanto à importância desses ofícios e quanto à relação mútua entre eles (2004, p. 327). Esse pensamento acerca do reconhecimento de apenas dois dos ofícios perdurou com os Socinianos[8].

Os Socinianos, na verdade, reconheciam só dois ofícios: Cristo agiu como profeta na terra, e age como rei no céu. Apesar de falarem também de Cristo como sacerdote, incluíam subordinadamente a Sua obra sacerdotal em Sua obra real e, portanto, não reconheciam o Seu saderdócio terreno. (IBIDEM).


 Outros argumentos contrários a essa doutrina são largamente expostos quando entra em cena na Igreja Luterana certa contrariedade “à doutrina dos três ofícios de Cristo”. Berkhof  (2004, p. 327) diz que certo Ernesti, teólogo luterano, destaca resumida contestação:

Segundo ele, a divisão dos ofícios é puramente artificial; os termos profetas, sacerdote e rei não são empregados na Escritura no sentido presente nesta divisão; é importante discriminar com clareza uma função em relação as outras, na obra realizada por Cristo; e os termos, como utilizados na Escritura, só são aplicados num sentido figurado e, portanto, não devem ter significados precisos a eles afixados, designando parte particulares da obra de Cristo. (IBIDEM).

Contudo, a explicação acima citada é fraca de argumentação, “visto que são utilizados em todo o Antigo Testamento [os termos] como designativos daqueles que, nos ofícios de profeta, sacerdote e rei, tipificam Cristo” (BERKHOF, 2004, p. 327).  


Outro debate é acentuado por Ritschl[9]. Este afirma que “o termo “vocação” deveria tomar o lugar da palavra “ofício”, que se presta a mal intendidos”. [...] “ele considerava a função ou atividade real de Cristo como primordial, e as funções profética e sacerdotal como secundárias e subordinadas, esta indicando a relação do homem com o mundo, e aquela, a sua relação com Deus[10]”. Com isso, Ritschl vai ao extremo e, em alusão à vocação, nega os três ofícios (BERKHOF, 2004, p. 327, 328).  Entretanto, Berkhof entende que “a distinção dos três ofícios de Cristo é valiosa e deve ser conservada[11]”. 
Contrariando todas as objeções acima destacadas, McGrath (2005, p. 472) afirma que “essa visão do ofício triplo de Cristo tornou-se oficial no século XVII e encontrou plena justificação nas obras dos teólogos protestantes do período”. Este teólogo diz ainda que um célebre François Tirretini[12] “expõe sua visão a respeito desta questão de maneira mais detalhada, em um texto originalmente publicado em latim, no ano de 1679”.


Este oficio mediador de Cristo distribuiu-se entre três funções, que se constituem em três ofícios individuais: o ofício profético, o sacerdotal, e o real... A tríplice miséria humana decorrente do pecado (isto é, a ignorância, a culpa, e a opressão do pecado) torna este tríplice ofício necessário. A ignorância é curada por meio do ofício profético; a culpa, por meio do ofício sacerdotal e a opressão por meio do ofício real. A luz profética dissipa as trevas da ignorância; o merecimento do sacerdote remove a culpa e alcança nossa reconciliação com Deus; o poder do rei vence a opressão do pecado e da morte. O profeta nos mostra Deus; o sacerdote nos leva a Deus; e o rei nos une a Deus em comunhão, trazendo sua glória até nós. O profeta ilumina nossa mente por meio do espírito que traz a luz; o sacerdote alivia nosso coração e consciência por meio do espírito de consolação; o rei subjuga nossas inclinações rebeldes por meio do espírito de santificação (McGRATH, 2005, p. 472).


Assim, concluímos que, tanto os testemunhos mais antigos quanto as objeções, são importantes para a valorização da doutrina, a qual passou despercebida por diversos teóricos em seus tratados teológicos. Toda essa problemática, entretanto, pode ter sido o motivo principal para a falta de esmero[13] pelo referido tema. Mesmo assim, é possível encontrarmos sua presença em alguns poucos teólogos hodiernos.


Artigo extraído de: RODRIGUES, André. O Tríplice Ofício de Cristo: Profeta, Sacerdote e Rei. 2011, Editora Nossa Livraria - PE



[1] Os reformados são seguidores do ensino bíblico sistematizado que tem como base o pensamento do reformador João Calvino. 

[2] Louis Berkhof (2004, p. 327); Charles Hodge (2001, p. 825); François Turretini, citado por Alister E. McGrath (2005, p. 472).

[3] Reformador protestante francês (1509-1564), adotou as reformas de Lutero, conduzindo-as de forma mais radical e profunda. Tornou-se especialmente notório por sua doutrina da predestinação absoluta. Como não pudesse desenvolver seu trabalho na França, mudou-se para Genebra, na Suíça, onde implantou um governo teocrático (ANDRADE, 2007, p. 377).

[4] Fundamentos da religião Cristã, escritos por João Calvino, e que vieram a se constituir no padrão de fé e prática da Igreja Reformada. As Institutas foram publicadas na cidade suíça de Basiléia, em 1536. (ANDRADE, 2007, p. 231).

[5] Ibidem.

[6] Aqui, essa expressão deve ser compreendida à luz das palavras originais para Cristo, que quer dizer “ungido”.

[7] Entre os Luteranos, Gerhard foi o primeiro a desenvolver a doutrina dos três ofícios, e Quenstedt considerava a distinção tríplice como não essencial e chamou a atenção para o fato de que alguns teólogos Luteranos distinguiam somente dois ofícios. (Ibidem).

[8] Os Socinianos, precursores dos modernos Unitarianos, foram outro grupo radical da reforma. Suas idéias se desenvolveram, na Itália. Lélio Sozzini (Socinus) de Siena (1525-1562) foi atraído ao anti-trinitarianismo pela morte do anti-trinitariano Servertus em Geneva. Fausto Sozzini (1539-1604), seu sobrinho, mudou-se para a Polônia em 1579 e permaneceu lá até a sua morte. [...] De acordo com o os socinianos, Cristo deve ser adorado como um homem que obteve a divindade por sua vida superior. Sua morte foi simplesmente um exemplo de obediência que Deus deseja de seus seguidores. Pecado original, deidade de Cristo, a Trindade, a predestinação foram negadas. (CAIRNES, 1995, p. 250, 251). Segundo Berkhof (1992, p. 87,88) no início do século XVI, os socinianos declararam que a doutrina de três Pessoas dotadas de uma essência comum é contrária à razão, [...] iam além dos arianos, negando a preexistência do Filho e dizendo que Cristo, quanto à sua natureza essencial, era apenas um homem, embora possuidor de uma peculiar plenitude do Espírito, tivesse um conhecimento especial de Deus e, quando de sua ascenção, houvesse recebido domínio sobre todas as coisas.

[9] Um desses teólogos luteranos descritos por Berkhof.

[10] Profeta e sacerdote, respectivamente.

[11] Ibidem.

[12] Célebre teólogo de Genebra, grande expoente da tradição reformada no século XVII (McGRATH, 2005, p. 472).
[13]  Cuidado excepcional em qualquer serviço ou atividade (AURÉLIO).

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